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Novos ministros do STJ debatem gestão processual, uso de IA e fortalecimento de precedentes

Recém-empossados no Superior Tribunal de Justiça (STJ), a ministra Marluce Caldas e o ministro Carlos Pires Brandão participam, nesta terça-feira (9), de suas primeiras sessões de julgamento como membros, respectivamente, da Quinta Turma e da Sexta Turma, colegiados especializados em direito penal.

Antes da estreia, eles revelam em entrevista detalhes sobre suas trajetórias e apresentam reflexões sobre temas como a alta carga de processos do tribunal, o uso da inteligência artificial (IA) no Judiciário e as medidas necessárias para aprimorar a uniformização da interpretação da lei federal e o sistema de precedentes qualificados.


Ao falar sobre gestão processual, Marluce Caldas apontou que é preciso "repensar um modelo de sociedade altamente conflituosa", na qual ainda existe uma forte tradição do litígio e da judicialização. Para a ministra, a situação atual exige estímulos à adoção de métodos alternativos de solução de conflitos e políticas de incentivo à autocomposição, assim como mais investimentos em tecnologias de triagem e organização processual.

No mesmo sentido, Brandão destacou a necessidade da utilização conjunta de ferramentas que possam aperfeiçoar a prestação jurisdicional. "Investimentos em IA, análise para triagem processual, análise preditiva de demandas e interoperabilidade de sistemas são caminhos que tendem a otimizar o trabalho interno e, ao mesmo tempo, melhorar a experiência dos jurisdicionados", observou o ministro.

O uso da IA é um assunto que desperta um misto de entusiasmo e cautela nos novos ministros. "Trata-se de um instrumento com grande potencial para tornar o processo mais rápido e eficiente, sem perder de vista o protagonismo humano na função jurisdicional", resumiu Marluce Caldas.

Confira a íntegra das entrevistas.

Como a experiência pessoal e profissional pode contribuir com a sua atuação no STJ?

Marluce Caldas – Minha trajetória no Ministério Público de Alagoas me permitiu vivenciar todas as instâncias da carreira, desde a primeira entrância até a atuação no segundo grau, na condição de procuradora de justiça. Esse percurso consolidou em mim uma visão plural e sensível das vicissitudes humanas que permeiam os conflitos levados ao Judiciário.

Na primeira entrância, lidando diretamente com a comunidade, pude compreender a realidade concreta do cidadão e os impactos imediatos das decisões judiciais em sua vida. Na segunda e na terceira entrâncias, aprofundei a análise jurídica em matérias complexas e estratégicas, conciliando a técnica com a necessidade de oferecer respostas céleres e eficazes. Já no segundo grau, como procuradora de justiça, a experiência me trouxe a maturidade institucional para compreender a importância da uniformização da jurisprudência e da segurança jurídica.

Essa vivência integral da carreira permite que eu compreenda o processo judicial em todas as suas dimensões, do atendimento direto ao cidadão até a consolidação de precedentes. É justamente essa perspectiva ampla que pretendo trazer ao STJ: unir sensibilidade humana, rigor técnico e consciência institucional para fortalecer a missão de garantir justiça, previsibilidade e confiança social.

Carlos Pires Brandão – Venho de uma família de juristas. Construí uma trajetória em diversas funções: promotor de justiça, procurador da República, juiz federal, desembargador federal do Tribunal Regional Federal da 1ª Região e professor de universidade pública. Minha formação interdisciplinar em engenharia elétrica pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e em direito pela Universidade Federal do Piauí (UFPI) enriquece a trajetória, integrando conceitos e recursos analíticos de diferentes campos do conhecimento.

Essa experiência multifacetada permite analisar questões processuais e materiais sob diversos ângulos. Depois de décadas na magistratura, a vida ensina a proferir decisões equilibradas, que levem em consideração as repercussões práticas e simbólicas.


No decorrer dos anos, percorri diferentes estados, semeando a palavra e a ação da Justiça ao longo de rios na Amazônia, em comunidades tradicionais, nos sertões desse imenso Brasil. Conheci de perto as peculiaridades regionais que muitas vezes não conseguem chegar aos tribunais, com a devida contextualização. Dessa convivência com diversos Brasis, nasceram políticas judiciais que ajudei a elaborar, defender e implementar, sempre com o propósito de ampliar o acesso à Justiça para as comunidades. Buscamos reduzir barreiras tecnológicas, geográficas, culturais, econômicas e sociais que ainda dificultam ou inviabilizam o acesso do cidadão ao Sistema de Justiça.

Entre os desafios enfrentados pelo STJ, está a expressiva carga processual, situação que tem levado o tribunal a adotar diversas iniciativas nos últimos anos para melhorar a gestão do acervo e garantir a adequada prestação jurisdicional. Quais são as soluções que ainda podem ser implementadas para enfrentar esse problema?

Marluce Caldas – De um ponto de vista macro, entendo que é preciso repensar um modelo de sociedade altamente conflituosa, com uma tradição de litígio e judicialização de todos os aspectos da vida. Talvez uma modificação no currículo das faculdades de direito, com disciplinas que levem os estudantes a priorizarem métodos alternativos de solução de conflitos, possa ser um dos caminhos.

Por outro lado, em uma perspectiva mais imediata, as medidas que vêm sendo adotadas pelo STJ nos últimos anos mostraram-se bastante eficazes, com destaque especial para as iniciativas do ministro Herman Benjamin, como a convocação de juízes auxiliares temporários.

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É igualmente importante avançar em políticas que incentivem a autocomposição, como mediação e conciliação, e investir em tecnologia voltada à triagem e à organização processual, reduzindo a tramitação de demandas repetitivas. Da mesma forma, a ampliação dos mecanismos de filtro recursal e a valorização dos precedentes qualificados podem contribuir de forma decisiva para racionalizar o trabalho da corte.

Ministra Marluce Caldas


Em síntese, trata-se de aliar medidas estruturais de longo prazo a soluções práticas e imediatas, capazes de garantir que o STJ continue a cumprir sua função essencial com eficiência e segurança jurídica.

Carlos Pires Brandão – Embora a sobrecarga processual não seja um fenômeno recente, ela ganhou contornos mais complexos nas últimas décadas. Os diversos fatores de judicialização da vida social escalam o número de processos e de recursos que aportam diariamente no STJ, exigindo novos desenhos e mecanismos institucionais que possam construir decisões mais acuradas, contextualizadas e sensíveis às múltiplas vozes que chegam ao Judiciário.

Na magistratura, sempre defendi que a combinação de inovações tecnológicas, gestão por metas, cooperação interinstitucional e aprimoramento de precedentes resulta em melhorias na eficiência processual e na qualidade das decisões. Para os novos desafios que passo a assumir no STJ, identifico três eixos de atuação que podem ser implementados: governança e tecnologia; governança de precedentes; e cooperação sistêmica e fomento a soluções consensuais.

O presente exige soluções de gestão com interfaces tecnológicas mais intuitivas e integradas às necessidades da equipe. Investimentos em IA, análise para triagem processual, análise preditiva de demandas e interoperabilidade de sistemas são caminhos que tendem a otimizar o trabalho interno e, ao mesmo tempo, melhorar a experiência dos jurisdicionados.

Por onde passei, incentivei a convergência de esforços, dividindo tecnologias, metodologias de trabalho, experiências humanas e boas práticas. Essa postura permitiu estruturar espaços de deliberação mais cooperativos, produtivos e qualificados. O compartilhamento de experiências proporciona interações multidisciplinares e multi-institucionais que ampliam a capacidade cognitiva dos atores acerca dos problemas, dos contextos.

Em síntese, trata-se de avançar de forma equilibrada. Poderemos enfrentar a sobrecarga processual sem abrir mão da missão central do STJ: uniformizar a interpretação da legislação federal e oferecer uma prestação jurisdicional célere, de qualidade e comprometida com a Justiça.

No âmbito do Judiciário, a IA é, ao mesmo tempo, uma oportunidade, um desafio e um tema de intenso debate, especialmente em relação aos limites para utilização da tecnologia. Qual sua opinião sobre o uso da IA na Justiça?

Marluce Caldas – Vejo como uma aliada, que pode ser uma incrível ferramenta para a agilidade na análise de documentos e informações, na organização de pautas, bem como na produção de relatórios e no controle estatístico, mas nunca delegando a atividade decisória. A IA deve ter ainda a "supervisão" humana, sendo uma ferramenta, e não uma substituta.

A grande vantagem da IA está em otimizar o tempo: ela pode assumir tarefas repetitivas e operacionais, liberando espaço para que magistrados e servidores se concentrem no que realmente importa: o estudo aprofundado e a tomada de decisão. Em resumo, trata-se de um instrumento com grande poder em potencial para tornar o processo mais rápido e eficiente, sem perder de vista o protagonismo humano na função jurisdicional.

Carlos Pires Brandão – Em experiências que tive no âmbito da Primeira Região, testemunhei como ferramentas de análise de dados, de precedentes e de triagem processual reduziram o tempo de trabalho ##repetitivo##. Permitiram que magistrados e servidores pudessem direcionar tempo e energia para casos de maior complexidade, que exigiam sensibilidade humana e aprofundamento jurídico. Esses exemplos me confirmam que a IA não é uma abstração futura. Já se encontra entre nós, trazendo benefícios concretos, desde que aplicada com responsabilidade e supervisão.

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A IA no Judiciário representa oportunidades de transformação e, simultaneamente, implica delicados desafios ético-institucionais. Como coordenador da Rede de Inteligência da Primeira Região, vivenciei essa dualidade de forma direta, liderando debates que orientaram o uso responsável dessa tecnologia. O desafio central, contudo, reside em estabelecer limites claros e princípios éticos inegociáveis. Sempre defendi, e continuarei defendendo no STJ, que a IA deve ter função estritamente auxiliar no processo decisório.

Ministro Carlos Pires Brandão


A trajetória da Justiça brasileira sempre esteve marcada por processos de modernização tecnológica. Em cada inovação, houve certamente ganhos, resistências e novos desafios. A IA, contudo, traz consigo rupturas de outra natureza. Não se trata apenas de impulsionar fluxos processuais, de substituir papéis por telas, mas de lidar com sistemas que se dispõem a simular a própria cognição humana. Esse diferencial histórico exige que o Judiciário esteja atento, à altura de seu papel, estabelecendo critérios claros que evitem tanto o deslumbramento acrítico quanto a rejeição precipitada.

O STJ tem o papel de uniformizar a interpretação da lei federal. Quais medidas precisam ser tomadas para garantir mais previsibilidade e segurança jurídica às decisões, fortalecendo a confiança da sociedade no Judiciário?

Marluce Caldas – O STJ tem como missão principal a interpretação e a uniformização da aplicação da lei federal, de modo que cada vez mais deve se debruçar sobre processos que tenham o potencial de transcender o litígio entre as partes, para servir de marco para o julgamento das instâncias inferiores.

Na verdade, a regulamentação da questão federal vai ajudar o tribunal a apreciar somente os casos de interesse de toda a sociedade, mantendo a sua jurisprudência íntegra, coerente e segura. Isso é que confere previsibilidade e segurança jurídica.


Ou seja, quanto mais o STJ focar na sua função de corte de precedentes, selecionando casos paradigmáticos e garantindo a estabilidade de seus entendimentos, maior será a confiança da sociedade no Judiciário e a efetividade da missão constitucional do tribunal.

Carlos Pires Brandão – A experiência institucional me ensinou que mudanças jurisprudenciais abruptas podem comprometer planejamentos familiares e empresariais, gerando instabilidade que repercute no desenvolvimento nacional. Seria muito importante a adoção da modulação temporal como regra, e não exceção. 

Os observatórios e os centros de inteligência do Judiciário se afiguram fundamentais para a percepção e para a identificação da necessidade de fixação ou de revisão jurisprudencial. As deliberações nesses espaços podem sinalizar consensos, permitindo que a sociedade, o mercado e o Estado se preparem para eventuais mudanças.

Por isso, mostra-se indispensável a adoção de mecanismos de gerenciamento e de monitoramento dos precedentes. O STJ pode, por exemplo, instituir sistema preditivo capaz de identificar divergências jurisprudenciais ainda em formação nos tribunais. Esta abordagem proativa pode transformar o STJ em corte que ativamente constrói, em diálogo permanente, coerência interpretativa nacional.

Pretendo, outrossim, utilizar linguagem clara e acessível nos julgados. A transparência e a acessibilidade das decisões respondem ao princípio da fundamentação das decisões judiciais e administrativas. Sou favorável aos movimentos que defendem a clareza jurídica e propõem o estabelecimento de um padrão de redação de ementas e acórdãos.

O STJ orienta a atuação da Justiça estadual e federal de primeiro e segundo graus por meio dos precedentes qualificados. Quais iniciativas podem fortalecer a cooperação entre os tribunais e a observância desses precedentes?

Marluce Caldas – A obrigatoriedade de observar as decisões dos tribunais superiores é relativamente recente no Brasil. Além disso, não é da tradição do direito brasileiro, herdeiro da civil law. Trata-se de medida inspirada no common law, de modo que há um necessário tempo de amadurecimento institucional e intelectual para a adoção do sistema de precedentes pela Justiça brasileira. Naturalmente, aliado a isso, é preciso formação continuada, produção acadêmica de qualidade e aplicação técnica do direito.

Isso quer dizer que a consolidação do sistema de precedentes no Brasil depende não apenas da imposição normativa, mas também de um processo cultural e pedagógico que envolva magistrados, membros do Ministério Público, advocacia e comunidade acadêmica. Somente assim será possível garantir que os precedentes do STJ sejam efetivamente compreendidos, respeitados e aplicados de forma uniforme em todo o país, fortalecendo a cooperação entre os tribunais e a confiança da sociedade na Justiça.

Carlos Pires Brandão – O STJ, ao exercer a sua missão de moderar e uniformizar a interpretação da legislação federal, desempenha também função pedagógica dentro do Sistema de Justiça. Sua função orientadora em relação aos tribunais estaduais e federais representa, podemos assim dizer, o coração pulsante de nosso sistema judicial unificado.

A cooperação judicial não se constrói por imposições verticais, mas mediante diálogo horizontal permanente e pela construção colaborativa de soluções. Mostra-se importante para a democracia o estabelecimento de redes colaborativas, capazes de transformar resistências iniciais em entusiasmo compartilhado pela inovação. É fundamental o estabelecimento, por exemplo, de observatórios de precedentes, não como estrutura burocrática adicional, mas como plataforma viva de intercâmbio entre o STJ e os tribunais de origem.

A tecnologia, quando bem direcionada e supervisionada por seres humanos, desempenha papel transformador. É possível o desenvolvimento de sistema integrado de alertas automáticos que informe magistrados quando estiverem prestes a decidir questão já pacificada pelo STJ. O recurso, longe de constranger, funcionaria como auxílio pedagógico.

Mostram-se importantes as visitas de ministros a tribunais estaduais e federais. Essa aproximação institucional melhora a compreensão dos desafios práticos da aplicação dos precedentes em cada região. Esse intercâmbio de experiência humaniza relações institucionais e habilita o Sistema de Justiça para construir empatia mútua.